sábado, 1 de novembro de 2008

"Todo signo está à espera de um leitor ideal"
Charles S. Peirce

"Eu sou meu ouvinte ideal"
Luciano Berio


No mês passado fui assistir à apresentação do Alva Noto, no SESC Pompéia. (Escrevi sobre ele no Rraurl em 2005. Quem tiver alguma paciência e ler a resenha vai notar a minha total empatia e entusiasmo- e uma total falta de distanciamento jornalístico- com a obra dele.) Comprei ingressos pra mim e para vários amigos uma semana antes da apresentação, mas no dia o público era tão ínfimo que a bilheteria estava distribuindo ingressos de graça. A dupla Slope, de Colônia, abriu o show com um trabalho delicado, experimental, sem ritmo, sem melodia, quadrafônico. Pediam a única coisa que um músico espera do público: silêncio. Não conseguiram. Por não ser a atração principal e por não ter imposto seu som à platéia através da força, quase todo mundo que estava lá conversava a plenos pulmões, expelindo regras, considerações gerais e avaliações finais sobre algo que eles não pararam para prestar atenção um segundo sequer. Logo entrou Olaf Bender, companheiro de selo de Alva Noto, esporrando graves de tremer o estômago e agudos de tremer os pêlos do ouvido, espalhados em beats ritmados em músicas claramente dançantes. Calou a boca do público. Alva Noto, depois, fez o mesmo. Todo mundo levantou e começou a dançar com o aumento de decibéis e de graves e com algum sinal de pulso e ritmo. Era esse o momento que todos esperavam- o momento do comportamento habitual do, no caso, ouvinte-de-música-eletrônica, o momento em que o ouvinte-de-música-eletrônica faz o que é esperado dele, que é basicamente sacolejar o corpo ao som de um bumbo grave e constante e ficar gritando iu-hu. Quem estava lá se sentia a nata da intelectualidade hype paulistana, os privilegiados por terem certeza do que é legal gostar e do que é legal achar que é novo. Mas tenho a convicção de que qualquer pessoa que vá a uma apresentação ou a um show e não faça silêncio na verdade não é um apreciador de música. Ela vai ao show porque, dessa maneira, se sente inserida num determinado grupo social do qual ela deseja fazer parte. Nesse sentido, gostar de tal música ou vestir tal camiseta não faz a menor diferença. Qualquer coisa que é tida como novidade e que recebe o selo de qualidade da mídia, seja ela alternativa ou mainstream, deve ser consumida. O público não deve ter nenhum tipo real de senso crítico- nem em relação à arte, nem em relação a si próprio. A mesma coisa aconteceu no show da Bjork ano passado no TIM Festival. Centenas de pessoas pagaram 150 reais pelo ingresso e a impressão que se tinha era que ninguém estava lá para ver e ouvir o trabalho da artista. Pagou porque era preciso, porque era necessário ir ao show da Bjork, assim como é necessário você comprar um Iphone ou ao menos ter alguma opinião sobre ele. Chamando utilitarismo de necessidade, mercado e público pervertem o maior valor da arte, que é a sua absoluta inutilidade- considerando que algo útil é algo com um fim pré-definido. Toda arte com um fim pré-definido é uma arte menor, pois limita sua interpretabilidade e subestima seu público. Da mesma maneira, o público, encerrando a obra de arte num conjunto de classificações, subestima sua potência transformadora e transmutável.

Não digo aqui nada de novo, e nem ao menos digo-o bem dito. Todo o público intelectualizado de São Paulo já está cansado de ouvir coisas do tipo. Mas por algum motivos nos achamos incólumes à mediocridade. Por algum motivo nos julgamos ouvintes ideais, enquanto os artistas seguem falando para as paredes.

17 comentários:

Anônimo disse...

a frase "era necessário ir ao show da Bjork, assim como é necessário você comprar um Iphone" é muito forte e muito verdadeira. e muito triste. mas ok, agora sei que alva noto é o som do momento entre os moderninhos, já me sinto mais in.

Anônimo disse...

é, totalmente. seus comentários são certeiros!

Natalia Mallo disse...

tarde demais...
o negócio é ouvir em casa
em boa companhia

jAh dIzIa LeMiNsK...tudo que respira conspira! disse...

definições precisas!
a arte hoje é ultilizada como mero pretexto...seja para estar em público, fugir da solidão, ou para sacudir o corpo sedento, ou bater um papo qualquer, menos para senti-la.

99% dos frequentadores de shows, não gostam de música alguma. estão ali por estar. por qualquer motivo alheio a sensibilidade da música.


ps.: que alegria eu senti quando vi que tinha post novo! de coração! q bom voltou. fique sempre.
: ]

Guto Leite disse...

Disse tudo, querida! Sincera e esporadicamente vou ao choro por isso. Choro de lágrimas, não de violões. É possível fazer algo contra isso? No alcance dos meus bracinhos, sigo fazendo. Grande abraço e arte!

marríe disse...

(cachorros não devem gostar de alva noto) seus textos sempre têm frases que me arrancam (sor)risos.
partilho, aliás, da alegria do moço aí de cima. não suma por tanto tempo.

Ana Dupas disse...

Viva o Alva Noto! Viva os blogs de crítica!
obs. não entendi porque vc repete duas vezes 'ouvinte-de-música-eletrônica'. (entendi o que vc quer dizer, mas acho que dá pra enxugar o texto)
obs2. dá uns pitacos no meu blog irmão deste!

Unknown disse...

Eu adoro seu blog e acho genial quando você fala uma verdadeassim. Isso é tão raro hoje em dia!
Quanto ao show da Björk, eu achei a mesma coisa!

Beijo!

Daniel Luppi disse...

Olá Mariá!
Excelente texto! Sua irresignação não é também a minha. Fico puto quando vou a um show e não consigo ouvir plenamente por conta das conversas paralelas.
Mas sou obrigado a discordar de vc qdo escreve que "não escreve nada novo e nem ao menos digo-o bem dito". Enquanto houver um energúmeno-falante-que-atrapalhe-a-audição-pública-de-um-show-concerto-ou-similar a indignação deve ser repetida! rs E vc o disse muito bem dito!
Bjão de um admirador!

Anônimo disse...

Isso não acontece apenas em São Paulo, Mariá. Em Minas é o mesmo. Só que boa parte das camisetas que eles aqui usam são compradas em...São Paulo.

Ainda bem que não vi muitas destas pessoas no show da Fernanda nesta recente sexta. Mas meu gerente de banco e esposa estavão lá. "É que adoro Bossa, a Nara", desculpou-se.

Eu pude ouvir você muito bem. E como você esteve bem.

Muito prazer, não te conhecia.

Alex Horta

Anônimo disse...

!!!

.:.FabriKarla.:. disse...

Mariá,
concordo com vc. E como o rapaz do comentário acima (de Minas), tenho que destacar que isso - essa praga de "freqüentadores" de shows de música (ou já seria "frequentadores", sem trema?) - também ataca por estas bandas... Aqui em Fortaleza não é diferente. Boa parte do público prefere conversar, contar piadas e fazer outras coisas durante o show, do que prestar atenção nas músicas, nas nuances, nos detalhes... Não que tenhamos que ficar estáticos, mudos e em transe, mas nem prestar atenção no que rola no palco é demais. O negócio é tão sério que durante um show da Leila Pinheiro, numa boate famosa daqui, nos idos de 98 (Turnê "Na ponta da língua"), ela se retirou do palco, reclamando que o público das mesas (bem próximas ao palco) estava falando tão alto que às vezes atrapalhava aquele diálogo artista-público entre as músicas. Na real, ela foi eufêmica, porque o público estava na verdade era gritando chamando o garçom pra fazer pedidos, nem aí pra quem tava se esgoelando ao piano... Triste!

Anônimo disse...

bacana bacana

Anônimo disse...

Rótulos. Grifes. Etiquetas. Modo de usar. Posologia. Efeitos colaterais. Indicações.
A arte está nas prateleiras!
Salve-se quem puder!!!

Unknown disse...

That´s it!

Unknown disse...

Isso é um exemplo das consequências do modo de produção da nossa sociedade. Infelizmente essa indiferênça à essência e a superimportância do que é reproduzido na mídia existe, e não reflete somente na falsa apreciação da arte. Veja a indiferença em relação ao ambiente. Atualmente, ser ecologicamente correto também está na moda e também forma um mercado consumidor. Tudo é influenciado pelo capitalismo, desde que ele se fundou! Ora, mas não sejamos de todo pessimistas. Acredito que existem, de verdade, pessoas que em seus ouvidos existe uma ligação direta ao coração. ;)

Anônimo disse...

Na mosca. Parabéns