quarta-feira, 30 de maio de 2007

Para vocês lerem, e para eu não me esquecer. É, para mim, um manifesto para o verdadeiro estudante (no sentido mais geral do termo) de qualquer arte que seja.

"O melhor volume de crítica musical que eu já encontrei é o Stravinski de Boris de Schloezer. Mas o que é que eu aprendi depois de lê-lo que eu já não sabia antes?
(...) Agrada-me em particular uma sentença, talvez a única de todo livro que eu consiga recordar (aproximadamente): 'A melodia é a coisa mais artificial em música' , ou seja, é a coisa mais distante de tudo o que um compositor possa encontrar LÁ, pronto, em estado de natureza, precisando apenas de imitação ou cópia direta. É, portanto, a raiz do teste, etc.
Este é um aforismo, uma afirmação geral. Para mim, profundamente verdadeira. Ela pode ser usada como medida de aferição para Stravinsky ou qualquer outro compositor. MAS e quanto ao conhecimento efetivo de Stravinsky? Quando Boris de Schloezer se refere a obras que já ouvi, eu entendo a maior parte ou talvez a totalidade do que ele quer dizer.
Quando ele se refere a obras que eu não ouvi, eu compreendo sua 'idéia geral' mas não adquiro nenhum conhecimento objetivo.
Minha impressão final é que ele aceitou um caso difícil, fez o máximo pelo seu cliente e por fim deixou Stravinsky entregue à sua própria sorte, embora ele tivesse explicado porque o compositor tomou um caminho errado ou não poderia ter feito de outra maneira."

Ezra Pound, ABC da literatura, ed. Cultrix

terça-feira, 29 de maio de 2007

Está muito frio e a tampa do piano está abaixada há algumas semanas, com roupas recém-passadas por cima. Por vezes utilizo-o também para o depósito de correspondências de banco, livros usados na faculdade, chaves, enfim, apenas como mais uma superfície despida que eu automaticamente ocupo, com essa minha compulsão em preencher espaços vazios com o caos. "A Maguinha deve estar chateada com você", preconizou minha mãe algum dia desses.
Maguinha é (era) minha bisavó. Antes de morrer, trancava seu piano (este que agora é "meu") a sete chaves numa sala de sua casa em São João da Boa Vista. Tinha ciúmes. Em cima dele, retratos da família. Nas nossas raras reuniões abria-o e tocava as mesmas valsas, sorrindo.
Na morte da Maguinha, minha mãe entrou na partição da herança com unhas e dentes, unicamente pelo piano. Alegava aos irmãos e primos que 'seria importante para minha formação musical'. Eu, na época apenas baterista, sem pretensões harmônico-melódicas de qualquer tipo, não dei bola. Pelo contrário: sabia que, uma vez o piano em nosso poder, eu teria o compromisso transcendental de tocá-lo.
Depois de diversos trâmites o piano ficou num campo neutro: a casa de meu avô, genro da Maguinha e nosso vizinho do andar de baixo. Em pouco tempo, descansava num canto sem ser incomodado, com toda sua pompa alemã, obsoleto e desafinado, como se estivesse engordando. Suas teclas de marfim, intocadas.
Alguns anos depois, pedi à família que o piano subisse aqui pra casa.
Foi um sofrimento: a escada que dá acesso à minha casa é íngreme e estreita, tiveram que desmontá-lo em êne partes- firma especializada, e tudo o mais, mas, na verdade, cheguei a pensar que o piano nunca mais seria o mesmo. Desmontaram o teclado, um dos braços sabe-se lá porquê estava colado no corpo ao invés de parafusado, descolaram-no à força, pancadas mesmo. (O resultado sonoro era rico, brutal, angustiante. Fiquei imaginando como deve ser bonita aquela peça em que jogam um piano da janela para se espatifar em ressonâncias.) Como se não bastasse, o piano não passou pela porta de casa e do meu quarto por um centímetro. Os marmanjos tiveram delicadeza e força o bastante para efetuar um milagre.
Et voilá o piano no meu quarto, como vindo de um teletransporte. Afinado, esperando que eu o toque. Depois que comecei a ter aulas esporádicas tenho tido semanas bem pianísticas. Mas em pouco tempo o caos se instaura por cima da tampa e minha atenção se atém a outra coisa qualquer, deixando Mr. Bechstein repousar no silêncio. Serei eu um dia capaz de fazê-lo soar como merece?